"Tenho um coração nas mãos e não sei o que fazer com ele. Neste preciso momento, ambas as hipóteses são a considerar: fechá-lo de castigo num quarto escuro ou, antes pelo contrário, atirá-lo ao ar em malabarismos de alto risco e ficar a ver onde vai calhar.
Como é que aqui chegámos? Da mesma forma, mais ou menos, que das outras todas. Um dia apaixonamo-nos, no outro dia a vida quer lá saber disso, e depois aqui estamos, mais uma vez, neste fim. Como uma rua cortada ao trânsito, inesperadamente, um caminho pelo qual corríamos tão velozes, de janelas abertas, gargalhadas como buzinas. Pois, mas hoje não se passa, é domingo no Terreiro do Paço e se quer atravessar para o Campo das Cebolas, o melhor é ir dar a volta ao bilhar grande. Andemos a pé, portanto, e é fim de tarde e encostamo-nos à maldita rede que só nos deixa ver e ainda não chegar a esse ancoradouro belo e fatal chamado Cais das Colunas. Tenho uma fotografia, que um dia me ofereceram, na qual um bando de indianos se queda a fitar o mar Tejo, também num fim de tarde, naquele mesmo lugar. Talvez dali consigam avistar a Índia em Almada, tal como eu consigo, mesmo através da maldita rede, olhar dali para o futuro. Naquela varanda de pedra clara que se alarga generosa, mergulha docemente os seus degraus duros na água e anuncia solenemente, entre duas colunas que nascem líquidas e gloriosas, que estamos à beira da possibilidade. Dali poderemos partir para todo o lado, uma cidade atrás e o mundo em frente. Não fosse a maldita rede.
Na boca, um sabor amargo que não é dos cigarros nem do café. Será de sonhos desfeitos, em calda desiludida, que mastigamos e mastigamos como se aquela pastilha elástica fosse papel amachucado. O papel dos rebuçados que ainda há pouco nos enchiam a boca, gulosos e quase enjoativos, quando a cidade inteira parecia feita de casas de florestas mágicas, construídas em bolo e massapão, para abocanharmos porque éramos Hansel e Gretel esfomeados.
Sabe-se lá como as coisas começam e qual a razão para acontecimentos deste calibre. Nada faria prever tamanho alvoroço e tão grande calamidade. Foi incauto o olhar que, distraído, se suspendeu. Dois dedos de conversa mais umas quantas gargalhadas e podia não ter passado daí. Mas passou, tropeçou, resvalou. E assim, caímos naqueles braços que se abriram para nos agarrar. Nos nossos olhos explodia fogo de artifício, a nossa pele parecia uma peça inteira de veludo importado, o coração dava saltos num trampolim. Enfim, o costume. E como de costume, parecia tudo inédito. Como se tivéssemos acabado de abrir a arca do Pessoa pela primeira vez e mergulhássemos incrédulos em tantos papéis, tantas personagens, tantas paisagens, rimas, revelações, fulgurância. Poderíamos passar o resto da vida a ordená-la. Organizá-la, investigá-la, editá-la. E sobretudo comover-nos. Não, nada era como de costume.
Até tivemos cuidado com as palavras. Até ao dia em que deixámos de ter. E a palavra mais perigosa de todas é aquela que pode atear um incêndio. Arrasar a casa em que vivíamos, reduzir a cinzas todas as vezes que no passado a proferimos, crepitar incansável até sermos nós próprios labaredas – capazes de queimarmos tudo e todos os que nos rodeiam. Amor, palavra tão pequenina como uma acendalha, tão perigosa como uma floresta, em pleno Agosto, num dia de vendaval.
É nesta altura da história, em que a vida sorri como se fosse parva, que a outra, a vidinha, se vira para nós e ri alarvemente: Ah Ah Ah!!! Querias! Batatas com enguias! Sempre as putas das enguias, esguias, escorregadias, e lá vem todo um cardume que nos aterra no prato, com estrondo, a contorcer-se. Batatas com compromissos, dívidas, dúvidas, batatas afinal cruas ou a esfarelarem-se, não há maneira dos nossos tempos acertarem com os tempos da receita. Bah! Os deuses do Olimpo só gostam de néctar e ambrósia, odeiam batatas e enguias. Abrem um alçapão na nuvem e deitam tudo fora, as batatas e as enguias, a água do banho e o bébé também, já agora.
O coração rebola, aos tombos. Bate em todas as esquinas, amachuca-se, está todo amolgado, coitadito. Um lixo lixado. Dizem que é reciclável. Em qual dos ecopontos devo enfiá-lo? No do papel, no do plástico, no das garrafas? Escrevo-o, embalo-o, bebo-o? Não, talvez guardá-lo, para mais tarde recordar. Posso levá-lo ao Hospital das Bonecas, a ver se o consertam. Pois assim como está, não está em estado de se apresentar a ninguém. Talvez exista uma sessão dos Corações Anónimos, em que possa conhecer outros que, como ele, se entregaram ao vício desregrado. Olho para ele e ele olha-me, como uma criança mimada a quem tivessem roubado o chupa–chupa, mais o pai e a mãe. É para aprenderes que sou eu que mando. Não vais brincar. Agora ficas de castigo, a olhar para o dia de amanhã. E repetes, até acreditares nisso, o que dizia a Scarlett O’Hara, com Tara a arder e o juízo um pouco chamuscado: “After all, tomorrow is another day!”"
by Catarina Portas
Amanhecer@Lisboa'2010 by João Carvalho |
Sem comentários:
Enviar um comentário